quarta-feira, 11 de junho de 2008

Formação Bíblica



PENTATEUCO

Nomes, divisões e conteúdo
Os cinco primeiros livros da Bíblia formam um conjunto que os judeus denominam “Lei”, ou Torá. O primeiro testemunho certo dessa denominação encontra-se no prefácio do Eclesiástico, e ela já era de uso corrente no começo da nossa era, por exemplo, no Novo Testamento (Mt 5,17; Lc 10,26; cf. Lc 24,44). Bem entendido, o termo “Lei” não se aplica somente à parte legislativa, como o mostra tal citação do NT (cf. Mc 12,26; Lc 20,37).
O desejo de obter cópias manejáveís desse grande conjunto fez com que se dividisse seu texto em cinco rolos de tamanho quase igual. Daí provém o nome que lhe foi dado nos círculos de língua grega: he pentateuchos (subentendido biblos), “O livro em cinco volumes”, que foi transcrito em latim como Pentateuchus (subentendido liber,), donde a palavra portuguesa Pentateuco. Por sua vez, os judeus de língua hebraica deram-lhe também o nome de “os cinco quintos da Lei”.
Essa divisão em cinco livros é atestada antes de nossa era pela versão grega dos Setenta. Esta — e seu uso se impôs à Igreja — intitulava os volumes segundo o seu conteúdo: Gênesis (porque começa pelas origens do mundo), Êxodo (porque começa com a saída do Egito), Levítico (porque contém a lei dos sacerdotes da tribo de Levi), Números (por causa dos recenseamentos dos caps. 1-4) e Deuteronômio (ou a “segunda lei”, de acordo com uma interpretação grega de Dt 17,18). Mas em hebraico os judeus designavam, e designam ainda, cada livro pela primeira palavra, ou pela primeira palavra importante, de seu texto: Bereshit, “no princípio”; Shemót, “eis os nomes”; Wayyiqra’, “Iahweh chamou”; Bemidbar, “Iahweh falou a Moisés no deserto”; Debarim, “eis as palavras”.
O Gênesis divide-se em duas partes desiguais: a história primitiva (1-11), sendo assim como que o pórtico da história da salvação, da qual a Bíblia inteira vai falar; ela remonta às origens do mundo e estende sua perspectiva à humanidade inteira. Relata a criação do universo e do homem, a queda original e suas conseqüências, e a perversidade crescente, castigada pelo dilúvio. A partir de Noé, a terra se repovoa, mas listas genealógicas cada vez mais restritas concentram finalmente o interesse em Abraão, pai do povo eleito. A história patriarcal (12-50) evoca afigura dos grandes antepassados: Abraão, o homem da fé, cuja obediência é recompensada por Deus, que promete, a ele, uma posteridade e, a seus descendentes, a Terra Santa (12,1-25,18);
Jacó, o homem da astúcia, que suplanta seu irmão Esaú, rouba a benção de seu pai Isaac e vence em esperteza seu tio Labão. Mas de nada lhe serviriam todas essas habilidades, se Deus não o tivesse preferido a Esaú desde antes de seu nascimento e não lhe tivesse renovado as promessas da aliança concedidas a Abraão (25,19-36,43). Entre Abraão e Jacó, Isaac é uma figura bastante apagada, cuja vida é narrada sobretudo em vista da de seu pai ou de seu filho. Os dois filhos de Jacó são os antepassados das Doze Tribos de Israel. A um deles é consagrado todo o final do Gênesis: os caps. 37-50 (menos 38 e 49) são uma biografia de José, o homem da sabedoria. Esta narração, que difere das precedentes, se desenvolve sem intervenção direta de Deus e sem nova revelação, mas toda ela é uma lição: a virtude do sábio é recompensada e a Providência divina converte em bem as faltas dos homens.
O Gênesis forma um todo completo: é a história dos antepassados. Os três livros seguintes formam outro bloco, no qual, dentro do contexto da vida de Moisés, narram-se a formação do povo eleito e o estabelecimento de sua lei social e religiosa.
O Êxodo desenvolve dois temas principais: a libertação do Egito (1,1-15,21) e a Aliança no Sinai (19,1-40,38); esses temas são interligados pelo tema da caminhada no deserto (15,22-18,27). Moisés, que recebeu a revelação do nome de Iahweh na montanha de Deus, é o condutor dos israelitas libertados da escravidão. Numa teofania impressionante, Deus faz aliança com o povo e lhe dita suas leis. Mal fora concluído, o pacto é violado pela adoração do bezerro de ouro, mas Deus perdoa e renova a Aliança. O grande conjunto dos caps. 25-31 e 35-40 relata a construção da tenda, lugar de culto na época do deserto.
O Levítico, de caráter quase exclusivamente legislativo, interrompe a narração dos acontecimentos. Contém: um ritual dos sacrifícios (1-7); o cerimonial de investidura dos sacerdotes, aplicado a Aarão e a seus filhos (8-10); as normas referentes ao puro e ao impuro (11-15), que terminam com o ritual do grande dia das Expiações (16); e a “lei de santidade” (17-26), que inclui um calendário litúrgico (23) e se encerra com bênçãos e maldiçoes (26). Em forma de apêndice, o cap. 27 determina as condições do resgate das pessoas, dos animais e dos bens consagrados a Iahweh.
Números retoma o tema da caminhada pelo deserto. A partida do Sinai é preparada por um recenseamento do povo (1-4) e pelas grandes ofertas feitas para a dedicação do Tabernáculo (7). Após a celebração da segunda Páscoa, os israelitas deixam a montanha santa (9-10) e chegam, depois de várias etapas, a Cades, de onde fazem uma tentativa frustrada de penetrar em Canaã pelo sul (11-14). Depois da estada em Cades põem-se de novo a caminho e chegam às estepes de Moab, em frente de Jericó (20-25). Vencidos os madianitas, as tribos de Gad e Rúben se estabelecem na Transjordânia (31-32). Uma lista resume as etapas do Êxodo (33). Em tomo dessas narrações são agrupadas prescrições que completam a legislação do Sinai ou que preparam o estabelecimento em Canaã (5-6; 8; 15-19; 26-30; 34-36).
O Deuteronômio tem estrutura particular: é código de leis civis e religiosas (12,1-26,15), enquadrado num grande discurso de Moisés (5-11 e 26,16-28,68). Este conjunto, por sua vez, é precedido do primeiro discurso de Moisés (1-4) e seguido do terceiro discurso (29-30) e também de trechos referentes ao fim de Moisés: missão de Josué, cântico e bênçãos de Moisés e sua morte (31-34). O código deuteronômico retoma, em parte, as leis promulgadas no deserto. Os discursos recordam os grandes acontecimentos do Êxodo, do Sinai e da conquista que começava; salientam seu sentido religioso, sublinham o alcance da lei e exortam à fidelidade.
Composição literária
A composição desta vasta coletânea era atribuída a Moisés pelo menos desde o começo de nossa era, e Cristo e os apóstolos conformaram-se com essa opinião (Jo 1,45; 5,45-47; Rm 10,5). Mas as tradições mais antigas jamais haviam afirmado explicitamente que Moisés fosse o redator de todo o Pentateuco. Quando o próprio Pentateuco diz, o que é muito raro, que “Moisés escreveu”, aplica essa fórmula a alguma passagem particular. Efetivamente, o estudo moderno desses livros apontou diferenças de estilo, repetições numerosas, sobretudo nas leis, e desordens nos relatos, que impedem de ver no Pentateuco uma obra que tenha saído toda da mão de um só autor. Depois de longas hesitações, no fim do século XIX uma teoria conseguiu impor-se aos críticos, sobretudo por influência dos trabalhos de Grafe de Welhausen: o Pentateuco seria a compilação de quatro documentos, diferentes quanto à idade e ao ambiente de origem, mas todos eles muito posteriores a Moisés. Teria havido primeiramente duas obras narrativas: o Javista (J), que desde o relato da criação usa o nome Iahweh, com o qual Deus se revelou a Moisés, e o Eloísta (E), que designa Deus pelo nome comum de Elohim; o Javista teria sido escrito no século IX em Judá, o Eloísta um pouco mais tarde em Israel; depois da ruína do reino do Norte, os dois documentos teriam sido reunidos num só (JE); depois de Josias, o Deuteronômio (D) Lhe teria sido acrescentado (JED); e, depois do Exílio, o código Sacerdotal (P), que continha sobretudo leis, com algumas narrações, teria sido somado a essa compilação, à qual serviu de arcabouço e de moldura (JEDP).
Essa teoria documentária clássica que, aliás, estava ligada a uma concepção evolucionista das idéias religiosas em Israel, foi freqüentemente questionada, e outros autores só a aceitam com modificações mais ou menos consideráveis; ela podia ser até rejeitada em bloco por diferentes razoes, a ligação com a tradição antiga, judaica ou crista, desempenhando talvez um papel particularmente importante. Não se deve esquecer que a teoria documentária é apenas uma hipótese elaborada para tentar explicar certo número de fatos literários.
A tradição “Javista” (assim chamada porque utiliza o nome divino Iahweh desde a narração da criação) tem um estilo vivo e colorido; numa forma cheia de imagens e com um modo de narrar realmente magistral, ela dá uma resposta profunda aos graves problemas que se apresentam a todo homem, e as expressões humanas de que se serve para falar de Deus encobrem um senso muito elevado do divino. Como prólogo à história dos antepassados de Israel, ela colocou um sumário da história da humanidade desde a criação do primeiro casal. Esta tradição teve origem em Judá e talvez tenha sido escrita, quanto ao essencial, no reinado de Salomão. No conjunto dos textos que lhe são atribuídos, distingue-se às vezes uma corrente paralela, que tem a mesma origem, mas que reflete concepções por vezes mais arcaicas e por vezes diferentes, designada pelas siglas J1 (Javista primitiva), ou L (fonte “Leiga”), ou N (fonte “Nômade”). A distinção parece ter fundamento, mas é difícil definir se se trata de uma corrente independente ou de elementos que o Javista integrou respeitando sua individualidade.
A tradição “eloísta” (que tem por característica mais saliente o emprego do nome comum Elohim para designar a Deus) distingue-se da tradição Javista por um estilo mais sóbrio e também mais uniforme, uma moral mais exigente, um cuidado de respeitar a distância que separa o homem de Deus. Os relatos das origens faltam nessa tradição, que só começa com Abraão. Provavelmente ela é mais recente que a tradição Javista e em geral é relacionada com as tribos do Norte. Certos autores não aceitam a existência de uma tradição eloísta independente e julgam suficiente a hipótese de complementos acrescentados à obra Javista ou de uma revisão desta obra. Contudo, sem falar nas particularidades do estilo e da doutrina, a diferença dos ambientes de origem e a continuidade dos paralelos, e também algumas divergências, com a tradição Javista desde a história de Abraão até aos relatos da morte de Moisés favorecem a teoria de uma tradição e de uma redução anteriormente independentes.
É preciso então levar em conta um fato importante. Apesar dos traços que os distinguem, os relatos Javista e eloísta contam substancialmente a mesma história: essas duas tradições têm, pois, uma origem comum. Os grupos do sul e os do norte partilhavam uma mesma tradição, que colocava em ordem as recordações do povo sobre sua história: a sucessão dos três Patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, a saída do Egito unida à teofania do Sinai, a conclusão da Aliança no Sinai ligada à instalação na Transjordânia, última etapa antes da conquista da Terra Prometida. Essa tradição comum se formou, oralmente e talvez já por escrito, na época dos Juízes, isto é, quando Israel começou a existir como povo.
As tradições Javista e Eloísta contêm muito poucos textos legislativos; o mais considerável é o código da Aliança, sobre o qual falaremos depois. As leis constituem, ao contrário, a parte principal da tradição “sacerdotal”, que demonstra um interesse especial pela organização do santuário, pelos sacrifícios e festas e pela pessoa e funções de Aarão e de seus descendentes. Além dos textos legislativos ou institucionais, ela contém também partes narrativas, que são bastante ampliadas quando servem para exprimir o espírito legalista ou litúrgico que a anima. Gosta dos cômputos e das genealogias; seu vocabulário particular e seu estilo geralmente abstrato e redundante a tornam facilmente reconhecível. Esta tradição se deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém; embora preserve elementos antigos, ela só se constituiu durante o Exílio e se impôs somente depois do retorno; nela se distinguem várias camadas redacionais. É, aliás, difícil decidir se essa tradição sacerdotal teve uma existência independente como obra literária ou se – o que é mais verossímil – um ou diversos redatores representantes dessa tradição incluíram seus elementos nas tradições já existentes e, num trabalho editorial, deram ao Pentateuco sua forma definitiva.
É bastante fácil seguir no Gênesis o fio das tradições javista, eloísta e sacerdotal. Depois do Gênesis, a corrente sacerdotal pode ser identificada sem dificuldade, especialmente no fim do Êxodo, em todo o Levítico e em grandes seções dos Números, mas torna-se mais difícil repartir o resto entre as correntes javista e eloísta. Depois de Números e até os derradeiros capítulos do Deuteronômio (31 e 34), essas três correntes desaparecem e são substituídas por uma tradição única, a do Deuteronômio. Ela se caracteriza por um estilo muito particular, amplo e oratório, onde voltam sempre as mesmas fórmulas bem construídas, e por uma doutrina constantemente afirmada dentre todos os povos. Deus, por puro beneplácito, escolheu Israel como seu povo, mas esta eleição e o pacto que a sanciona têm como condição a fidelidade de Israel à lei de seu Deus e ao culto legítimo, que lhe deve prestar num santuário único. O Deuteronômio é o ponto onde aportou uma tradição que tem parentesco com a corrente eloísta e com o movimento profético, e cuja voz já se percebe em textos relativamente antigos. O núcleo do Deuteronômio pode representar costumes do Norte trazidos para Judá pelos levitas depois da ruína de Samaria. Esta lei, talvez já enquadrada num discurso de Moisés, foi depositada no templo de Jerusalém. Lá ela foi encontrada no reinado de Josias, e a sua promulgação ajudou a promover a reforma religiosa. Uma nova edição foi publicada no começo do Exílio.
A partir desses diversos blocos da tradição, o crescimento do Pentateuco se processou em várias etapas cujas datas, porém, é difícil precisar. As tradições javista e eloísta foram combinadas em Judá pelo fim da época monárquica, talvez no reinado de Ezequias, quando, segundo nos informa Pr 25,1, foram compiladas antigas obras literárias. Antes do fim do Exílio o Deuteronômio, considerado como uma lei dada por Moisés em Moab, foi inserido entre o fim de Números e os relatos sobre a nomeação de Josué e a morte de Moisés (Dt 31 e 34). É possível que a adição da tradição sacerdotal ou, se se preferir, a intervenção dos primeiros redatores sacerdotais, tenha sido feita pouco depois. Em todo caso, a “Lei de Moisés” trazida de Babilônia por Esdras parece representar todo o Pentateuco já próximo de sua forma final.
As relações entre o Pentateuco e os livros bíblicos seguintes deram ocasião a hipóteses contrárias. Desde muito tempo, certos autores falam de um “Hexateuco”, obra em seis livros, que teria incluído também Josué e o começo dos Juízes. Com efeito, eles aí encontram a continuação das três fontes J, E, P, do Pentateuco e notam que o tema da promessa, que volta com tanta freqüência nos relatos do Pentateuco, exige que esses relatos tenham narrado também a sua realização, que é a conquista da Terra Prometida. O livro de Josué teria sido depois separado desse conjunto e se tornado o primeiro dos livros históricos. Autores mais recentes falam, ao contrário, de um “Tetrateuco”, uma obra em quatro livros, que não teria incluído o Deuteronômio, o qual teria a princípio servido de introdução a uma grande “história deuteronomista” que se estenderia até o fim de Reis. O Deuteronômio, posteriormente, teria sido desligado desse conjunto, quando se quis reunir num mesmo bloco, o nosso Pentateuco, isto é, tudo o que se referia à pessoa e à obra de Moisés. É esta segunda opinião que será adotada, com reservas, na introdução aos livros históricos e que é suposta por algumas das notas. Mas reconhecemos que se trata apenas de uma hipótese, como o é também a opinião concorrente, a de um Hexateuco.
Já vimos que a mesma incerteza pairava sobre muitas questões que a composição do Pentateuco suscita. Ela se prolongou por seis séculos, no mínimo, e reflete as mudanças da vida nacional e religiosa de Israel. Todavia, apesar dessas vicissitudes, o desenvolvimento se apresenta finalmente homogêneo. Dissemos que as tradições narrativas se originaram na época em que se formava o povo de Israel. As mesmas observações podem ser feitas com certas nuanças, sobre as partes legislativas; elas contêm um direito civil e religioso que evoluiu juntamente com a comunidade que ele regia, mas sua origem se confunde com a do povo. Essa continuidade tem um fundamento religioso: foi a fé em Iahweh que cimentou a unidade do povo, e foi a mesma fé que unificou o desenvolvimento da tradição. Ora, os começos do javismo são dominados pela personalidade de Moisés. Foi ele o iniciador religioso do povo e seu primeiro legislador. As tradições anteriores que tiveram nele seu termo e a lembrança dos acontecimentos que ele presidiu tornaram-se a epopéia nacional; a religião de Moisés marcou para sempre a fé e as práticas do povo; a lei de Moisés ficou sendo sua norma. As adaptações exigidas pela mudança dos tempos foram feitas segundo seu espírito e se cobriram com sua autoridade. Pouco importa que não possamos atribuir-lhe com certeza a redação de nenhum dos textos do Pentateuco: é ele o seu personagem central e a tradição judaica tinha razão de chamar o Pentateuco de livro da Lei de Moisés.

Os relatos e a história
O leitor dos relatos do Pentateuco estabelece normalmente uma relação estreita entre uma mensagem religiosa, seja qual for, e a exatidão quase material dos acontecimentos de que fala o relato. Esta exatidão fundamental, esta historicidade, se se quiser, seria a condição de possibilidade de um sentido religioso. É uma atitude que devemos a nossa cultura, mas devemos tentar nos situar na perspectiva própria dos textos em vez de lhes impor nossa perspectiva historicizante. As tradições eram o patrimônio vivo de um povo de um passado distante; davam-lhe o sentimento de sua unidade, uma vez que todas se ligavam a antepassados comuns, e, sobretudo, eram o sustentáculo de sua fé; eram como um espelho em que o povo se contemplava nas situações mais diversas. Pode-se pensar que essas mesmas situações, a partir das quais se refletia sobre o passado, tinham condicionado de um lado a maneira de contar as coisas. Não se poderia pedir a tais textos o rigor que o historiador moderno usaria. Mas, se a historicidade parece problemática do ponto de vista do historiador, pois os relatos e as leis do Pentateuco não são em primeiro lugar um livro de história, devemos, em contrapartida, salientar seu caráter religioso: eles são o testemunho da fé de um povo ao longo de numerosas gerações, sobretudo durante o período movimentado que vai das conquistas assírias à perda da independência nacional sob a égide do império persa. É este testemunho religioso que é importante para nós, como crentes, independentemente do valor que os textos podem ter para escrever uma história do povo da Bíblia, em termos de história moderna. É verdade que existe uma relação entre o acontecimento e o testemunho religioso, mas freqüentemente o acontecimento importante é aquele a partir do qual se reflete sobre o passado e não aquele do qual se fala. Por outro lado, parece evidente que se fala do passado tal qual é conhecido freqüentemente há séculos de distância, e para dele tirar uma lição para apresente. Atribuir aos autores bíblicos perspectivas de bibliografias ou de historiadores modernos não é a melhor perspectiva para chegar àquilo que eles têm a nos dizer.
Os onze primeiros capítulos do Gênesis devem ser considerados à parte. Atualmente fala-se freqüentemente de “mito”. É preciso compreender o termo como a designação do caráter literário, e não no sentido de história fabulosa, ou legendária. Um “mito” é simplesmente uma antiga tradição popular que conta as origens do mundo e do homem ou de certos acontecimentos, por exemplo, do dilúvio universal, que teriam acontecido nas origens da humanidade. Um “mito” é relato feito de modo imagístico e simbólico; o autor do relato bíblico tomou tal ou tal tradição de seu próprio ambiente, porque ela servia ao seu desígnio didático. Por outro lado, os “mitos” ou relatos de origens, têm normalmente caráter etiológico: tais relatos fornecem uma resposta às grandes questões da existência humana, no mundo; por meio dessas narrativas, dá-se uma resposta a questões como a da origem do pecado ou do sofrimento humano. , O que se diz sobre este passado distante oferece uma explicação à nossa situação atual. De certa maneira procede-se por eliminação: tudo aquilo que, hoje, é percebido como limitação explica-se por um acontecimento nas origens. Em poucas palavras, o “mito” explica como vieram à existência o mundo e todas as suas criaturas e por quê nós, humanos, somos tais como somos.
O resto dos acontecimentos de que fala o Pentateuco, desde Abraão até a morte de Moisés, tem caráter diferente. Pode-se falar de história a propósito destes relatos? É muito fácil perceber que não se trata de história no sentido moderno do termo. O fim buscado pelos diferentes autores não é o que o historiador de hoje buscaria. Isso, porém, não quer dizer que aí não possa haver ensinamentos dos quais o historiador poderia se servir para escrever tal história, por mais difícil que seja a tarefa em vista do caráter dos textos bíblicos.
A história patriarcal é história de família: as lembranças que se guardavam séculos mais tarde, a respeito dos antepassados, Abraão, Isaac, Jacó e José. E história popular: detém-se nos episódios pessoais e nos traços pitorescos, sem nenhuma preocupação de relacionar essas narrações com a história geral. É, enfim, história religiosa: todos os momentos decisivos são marcados por uma intervenção divina e neles tudo aparece como providencial, concepção teológica verdadeira de ponto de vista superior, mas que deixa na sombra a ação das causas segundas; além disso, os fatos são introduzidos, explicados e agrupados a fim de demonstrar uma tese religiosa: há um Deus que formou um povo e lhe deu um país; este Deus é Iahweh, este povo é Israel, este país é a Terra Santa. Contudo, tais relatos podem dar uma imagem fiel, embora simplificada, da origem e das migrações dos antepassados de Israel, de seus vínculos geográficos e étnicos, de seu comportamento moral e religioso. Porém, apesar da contribuição sempre crescente das descobertas da história e da arqueologia orientais, não estamos em posição de verificar a fundamentação de cada pormenor ou de situar com precisão os patriarcas na história geral.
Depois de uma lacuna, o Êxodo e os Números, que têm seu eco no Deuteronômio, e um complemento no fim do mesmo livro, referem os acontecimentos que vão do nascimento à morte de Moisés: a saída do Egito, a permanência no Sinai, a subida até Cades, a caminhada através da Transjordânia e a instalação nas estepes de Moab. Negar a realidade histórica desses fatos e da pessoa de Moisés é tomar inexplicáveis a história subseqüente de Israel, sua fidelidade ao javismo, apesar da inclinação, que durou séculos, de se voltar para os deuses estrangeiros, sobretudo cananeus, e sua devoção à Lei. É preciso reconhecer, contudo, que a importância dessas recordações para a vida do povo e o eco que elas tinham nos ritos deram aos relatos a cor de uma gesta heróica (por exemplo, a passagem do mar) e por vezes de uma liturgia (como a Páscoa). Israel, que se tornou povo, faz então sua entrada na história geral e, embora nenhum documento antigo o mencione ainda — salvo uma alusão obscura na estela (lápide) do Faraó Memeptah — o que a Bíblia diz dele concorda, em linhas gerais, com o que os textos e a arqueologia nos informam sobre a descida dos grupos semíticos para o Egito, sobre a administração egípcia do Delta e a situação política da Transjordânia. A tarefa do historiador atual é confrontar esses dados da Bíblia com os fatos conhecidos da história geral. Ela não é fácil e impõe reservas que provêm tanto da insuficiência dos dados bíblicos quanto da incerteza da cronologia extrabíblica. É por isso que há diversas hipóteses sobre a época dos patriarcas ou sobre a data provável do Êxodo dos israelitas para fora do Egito, sob a guia de Moisés. Infelizmente não podemos confiar nas indicações cronológicas de 1Rs 6,1 e Jz 11,26. Para alguns, a indicação decisiva encontrar-se-ia em Ex 1,11: os hebreus no Egito teriam trabalhado na construção das cidades-armazéns de Pitom e de Ramsés. O Êxodo seria posterior à ascensão de Ramsés II, que fundou a cidade de Ramsés. Os grandes trabalhos começaram aí desde o início de seu reino e é provável que a saída do grupo de Moisés tenha ocorrido na primeira metade ou pelo meio deste longo reino (1290-1224), digamos por 1250 a.C. ou pouco antes. Se levarmos em conta a tradição bíblica sobre uma estada no deserto durante uma geração, a instalação na Transjordânia colocar-se-ia nas cercanias de 1225 a.C. Estas datas estão conformes aos ensinamentos da história geral sobre a residência dos faraós da XIX dinastia no Delta do Nilo, sobre o enfraquecimento do controle egípcio na Síria-Palestina pelo fim do reinado de Ramsés II, e sobre as perturbações que abalaram todo o Oriente próximo no fim do séc. XIII. Elas concordam com as indicações da arqueologia sobre o início da Idade do ferro, que coincide com o estabelecimento dos israelitas em Canaã.
A legislação
Na Bíblia judaica, o Pentateuco é chamado a Lei, a Torá: de fato, recolhe o conjunto das prescrições que regulavam a vida moral, social e religiosa do povo. Para nossos olhos modernos, o traço mais notável dessa legislação é seu caráter religioso. Esse aspecto encontra-se também em certos Códigos do Oriente antigo, mas nunca acompanhado de tanta compenetrarão do sagrado e do profano; em Israel, a lei é ditada por Deus, regula seus deveres para com Deus e motiva suas prescrições com considerações religiosas. Isso parece óbvio no caso das normas morais do Decálogo ou das leis cultuais do Levítico; mas é muito mais significativo que, numa mesma coleção, se misturem leis civis e penais com preceitos religiosos, e que o conjunto seja apresentado como a carta da aliança com Iahweh. Por uma conseqüência natural, o enunciado dessas leis é vinculado às narrações dos acontecimentos do deserto, onde essa aliança foi concluída.
Já que as leis são feitas para serem aplicadas, era preciso adaptá-las às condições variáveis de cada ambiente e época. Isso explica que se encontrem, nos conjuntos que vamos examinar, junto com elementos antigos, fórmulas ou disposições que testemunham preocupações novas. Por outro lado, nesta matéria, Israel foi necessariamente tributário de seus vizinhos. Certas disposições do Código da Aliança ou do Deuteronômio se reencontram, com estranha semelhança, nos Códigos da Mesopotâmia, na coleção das Leis assírias ou no código hitita. Não houve dependência alguma direta; esses contatos se explicam pela irradiação das legislações estrangeiras ou por um direito consuetudinário que se tomou em parte o bem comum do antigo Oriente próximo. Além disso, logo após o Êxodo, a influência cananéia se fez sentir fortemente na expressão das leis e nas formas do culto.
O Decálogo, “as palavras” (Ex 20,1; 24,3-8 etc.) ou “Dez palavras” (Dt 4,13; 10,4; cf. Ex 34,28), é por excelência “o livro da aliança” (Ex 24,7), o que põe em relevo a tradição das “tábuas de pedra” (Ex 31.18s). Ele é a lei fundamental, moral e religiosa, da Aliança de Iahweh com Israel. Ele é dado duas vezes (Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21), com variantes por vezes notáveis que traem retoques mais recentes. Estas duas versões poderiam remontar a uma forma mais curta que era apenas uma série de proibições. Se em princípio, nada se opõe à origem mosaica do Decálogo, não podemos na verdade prová-la.
O Código da Aliança (Ex 20,22-23,33 [mais estritamente Ex 20,22-23,19]), faz parte das tradições eloístas e foi inserido entre o fim do Decálogo e a conclusão da aliança. Este conjunto de leis responde a uma situação posterior à época de Moisés.
É o direito de uma sociedade de pastores e de camponeses; e o interesse que demonstra pelos animais de carga, pelos trabalhos nos campos e na vinha, pelas casas, leva a crer que a sedentarização já é fato consumado. É somente nessa época que Israel pôde conhecer e praticar o direito consuetudinário no qual este Código se inspira e que explica seus paralelos precisos com os Códigos da Mesopotâmia, mas o Código da Aliança é penetrado pelo espírito do javismo, muitas vezes em reação contra a civilização de Canaã. Reúne, sem plano sistemático, coleções de preceitos que se distinguem por seu objeto e por sua formulação, ora “casuística” (aceitável sem refutações) ou condicional, ora “apodítica” (evidente, clara) ou imperativa. A coleção teve de início existência independente e poderia nesse caso refletir um período relativamente antigo na história de Israel. Sua inserção nos relatos do Sinai é anterior à composição do Deuteronômio.
O Código deuteronômico (Dt 12,1-26,15) forma a parte central do livro do Deuteronômio, cujas características e história literária descrevemos acima. Retoma uma parte das leis do Código da Aliança, mas adapta-as às mudanças da vida econômica e social; assim, com referência ao perdão das dívidas e ao estatuto dos escravos, compare-se Dt 15,1-11 com Ex 23,10-11; Dt 15,12-18 com Ex 21,2-11. Mas, desde seu primeiro preceito, ele se opõe ao Código da Aliança num ponto importante: este havia legitimado a multiplicidade dos santuários (Ex 20,24), ao passo que o Deuteronômio impõe a lei da unidade do lugar de culto (Dt 12,2-12) e essa centralização acarreta modificações nas regras antigas sobre os sacrifícios, o dízimo e as festas. O Código deuteronômico contém também prescrições alheias ao Código da Aliança e por vezes arcaicas, que provêm de fontes desconhecidas. O que permanece como sua característica e que marca a mudança dos tempos é a preocupação de proteger os pobres, a lembrança constante dos direitos de Deus sobre sua terra e sobre seu povo e o tom exortativo que penetra essas prescrições legais.
O Levítico, embora só tenha recebido sua forma definitiva depois do Exílio, contém elementos bem antigos, como as proibições alimentares (11) as regras de pureza (13-15); o cerimonial tardio do grande dia da Expiação (16), sobrepõe uma concepção muito elaborada do pecado a um antigo rito de purificação. Os caps. 17-26 formam um conjunto chamado Lei de santidade, que inicialmente era separado do Pentateuco. Essa Lei reúne elementos diversos, alguns dos quais podem remontar até à época nômade, como o cap. 18, outros são ainda pré-exílicos e outros mais recentes. Uma primeira coleção se formou em Jerusalém pouco antes do Exílio, coleção esta que Ezequiel pode ter conhecido, com muitos contatos de linguagem e de conteúdo com a Lei de Santidade. Mas esta só foi editada no decurso do Exílio, antes de ser inserida no Pentateuco pelos redutores sacerdotais que a adaptaram ao resto do material que reuniram.
Sentido religioso
A religião do Antigo Testamento, como a do Novo, é religião histórica: funda-se na revelação que Deus fez a determinados homens, em determinados lugares e circunstâncias, e nas intervenções de Deus em determinados momentos da evolução humana. O Pentateuco, que reproduz a história dessas relações de Deus com o mundo, é afundamento da religião judaica e tomou-se seu livro canônico por excelência, sua lei.
Nele encontrava o israelita a explicação do seu destino. Não apenas tem, no começo do Gênesis, a resposta às interrogações que todo homem se faz sobre o mundo e a vida, sobre o sofrimento e a morte, mas encontra também resposta para seu problema particular: Por que Iahweh, o Único, é o Deus de Israel? Por que Israel é seu povo entre todas as nações da terra? É porque Israel recebeu a promessa. O Pentateuco é o livro das promessas: a Adão e Eva após a queda, o anúncio da salvação longínqua, o Proto-evangelho; a Noé depois do dilúvio, a certeza de uma nova ordem do mundo; e a Abraão principalmente. A promessa que lhe é feita é renovada a Isaac e a Jacó e se estende a todo o povo deles nascido. Essa promessa se refere imediatamente à posse do país em que viveram os Patriarcas, a Terra prometida, mas implica outras coisas mais: significa que existem entre Israel e o Deus dos Pais relações especiais, únicas.
Pois Iahweh chamou Abraão, e nessa vocação já se prefigurava a eleição de Israel. Foi Iahweh que fez dele um povo e deste povo, seu povo, por uma eleição gratuita, por um desígnio amoroso concebido desde a criação e continuado através de todas as infidelidades dos homens.
Essa promessa e essa eleição são garantidas por uma aliança. O Pentateuco é também o livro das alianças. Uma já é feita, embora tácita, com Adão; ela é explícita com Noé, com Abraão, com todo o povo, enfim, pelo ministério de Moisés. Não se trata de um pacto entre iguais, pois Deus não necessita dele e é ele quem toma a iniciativa. No entanto, ele se compromete, se obriga, de certa maneira, pelas promessas que faz. Mas exige, em contrapartida, a fidelidade de seu povo: a recusa de Israel, seu pecado, pode rompera vínculo que o amor de Deus formou.
As condições dessa fidelidade estão reguladas pelo próprio Deus. Deus dá sua lei ao povo que escolheu para si. A lei ensina-lhe seus deveres, regula sua conduta conforme a vontade de Deus, e, mantendo a aliança, prepara o cumprimento das promessas.
Esses temas da Promessa, da Eleição, da Aliança e da Lei são os fios de ouro que se entrecruzam na trama do Pentateuco e continuam seu curso por todo o Antigo Testamento. Pois o Pentateuco não é completo em si mesmo: menciona a promessa, mas não a realização, já que termina antes da entrada na Terra Santa. Devia permanecer aberto como uma esperança e uma exigência: esperança nas promessas, que a conquista de Canaã parecerá cumprir (Js 23), mas que os pecados do povo comprometerão e que os exilados recordarão na Babilônia; exigência de uma lei sempre premente, que permanecia como que uma testemunha contra Israel (Dt 31,26).
Essa situação continuou até Cristo, que é o termo para o qual tendia obscuramente a história da salvação e que lhe dá todo o seu sentido. São Paulo salienta o significado deste fato, sobretudo em Gl 3,15-29. Cristo concluiu a Nova Aliança, prefigurada pelos pactos antigos, e nela faz entrar os cristãos, herdeiros de Abraão pela fé. Quanto à Lei, ela foi dada para guardar as promessas, como um pedagogo que conduz a Cristo, em quem essas promessas se realizam.
O cristão não está mais sob o pedagogo, é libertado das observâncias da Lei, mas não de seu ensinamento moral e religioso. Pois Cristo não veio ab-rogar a Lei, e sim levá-la à perfeição (Mt 5,17); o Novo Testamento não se opõe ao Antigo, prolonga-o. Não só a Igreja reconheceu nos grandes eventos da época patriarcal e mosaica, nas festas e ritos do deserto (sacrifício de Isaac, passagem do mar Vermelho, Páscoa etc.), as realidades da Nova Lei (sacrifício de Cristo, batismo, Páscoa cristã), como também a fé cristã exige a mesma atitude fundamental que os relatos e os preceitos do Pentateuco prescreviam aos israelitas. Mais ainda: em seu itinerário para Deus, toda alma atravessa as mesmas etapas de desapego, provação e purificação pelas quais passou o povo eleito, e encontra sua instrução nas lições que foram dadas a este.
Uma leitura cristã do Pentateuco deve seguir antes de tudo a ordem dos relatos: o Gênesis, depois de haver oposto às bondades de Deus Criador as infidelidades do homem pecador, mostra, nos Patriarcas, a recompensa concedida à fé; o Êxodo é o esboço de nossa redenção; Números representa o tempo de provação em que Deus instrui e castiga seus filhos, preparando a congregação dos eleitos. O Levítico poderá ser lido com mais proveito em conexão com os últimos capítulos de Ezequiel ou depois dos livros de Esdras e Neemias; o sacrifício único de Cristo tornou caduco o cerimonial do antigo Templo, mas suas exigências de pureza e de santidade no serviço de Deus continuam sendo uma lição sempre válida. A leitura do Deuteronômio acompanhará bem a de Jeremias, o profeta de quem ele está mais próximo pelo tempo e pelo espírito.

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